13 de mar. de 2016

[Crônica] ANTÔNIO MARIA – A noite é uma lembrança



– PEDRO LUSO DE CARVALHO

ANTÔNIO MARIA (Antônio Maria Araújo de Morais) nasceu em Recife a 17 de março de 1921 e morreu no dia 15 de outubro de 1964, aos 43 anos. Esse que foi um dos nossos melhores cronistas mantinha colunas diárias no O Jornal, onde permaneceu por 15 anos; no O Globo, em 1959 e na Última Hora, todos do Rio de Janeiro.
Antônio Maria foi muito mais que excelente cronista, foi homem de televisão (TV Tupi e TV Rio), foi radialista (rádio Mayrink), foi compositor (escreveu a letra de Manhã de Carnaval e muitas outras). A música Manhã de Carnaval serviu de temas musicais para o filme franco-ítalo-brasileiro, Orfeu Negro, ganhador da Palma de Ouro em Cannes e do Oscar de melhor filme estrangeiro.
Maria, como era como era conhecido, fez muitos amigos: Di Cavalcanti, Dorival Caymmi, Jorge Amado, Vinícius de Moraes, Carlos Heitor Cony, Aracy de Almeida, Luiz Bonfá, dentre tantos outros.
Passemos agora à crônica de Antônio Maria, intitulada A noite é uma lembrança, escrita 18/5/1957, no Rio de Janeiro (in Morais, Antônio de Araújo de.  Crônicas de Antônio Maria. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1996, p. 31-33):

    
A NOITE É UMA LEMBRANÇA
    – ANTÔNIO MARIA

BOA VIAGEM, FEVEREIRO. É de principiante isto de o cronista escrever que está numa janela de hotel, vendo a noite e fumando um cigarro. Mesmo havendo mar e sendo Boa Viagem um encontro muito desejado, não gosto da sem-cerimônia com que me faço personagem de mais uma crônica, como se eu, a noite e o cigarro ainda fôssemos novidade.
Entretanto, alguns acontecimentos espirituais do homem podem ser contados e explicados, desde que esse homem seja capaz de transmitir a alguém a beleza de sua solidão. Que ninguém se queixe de falta de ocorrências para escrever melhor. E sim de incapacidade para gritar o seu grande mundo interior.
Eu vim à janela porque conheci uma moça e estou preocupado em como a venho pensando, há um enorme tempo. O cabelo, os olhos, a boca, as mãos e o silêncio. Também a palavra vagarosa, que perguntava de vez em quando sobre uma verdade já velha ou sobre uma mentira mais em moda. Se confiasse em cada um de nós, explicaria à sua maneira o Homem, o Amor, o rio Capibaribe e o compositor João Sebastião Bach. Mas para isso, além de ser preciso confiar, teria que pedir a palavra e se imponentizar de tal maneira que nos assustaria à sua volta, após assustar-se consigo mesma. O que dizia eram curtas perguntas. O que fazia era pouco e casual. Mesmo assim eu a advinhava sábia e corajosa.
Mais das vezes se escreve assim de uma mulher quando por ela se sente uma dessas súbitas emoções, muito parecidas com o chamado amor à primeira vista. Mas, em meu caso, essas impressões já não me confundem. Uma mulher me empolga assim que a sinto gente; e nela me perco, de descoberta em descoberta, sem me consentir a mínima desconfiança de estar amando-a, em qualquer das maneiras antigas ou atuais de amar alguém. Uma mulher-gente nos atrai aos seus mistérios e, no tempo em que procuramos desvendá-los, só acrescentamos dúvidas à nossa ignorância inicial.
Apesar disso, é dever do homem-gente deixar que o seu pensamento se demore nas lembranças de sua conhecida recente. Amor é outra coisa. Amor a gente espera, como o pescador espera o seu peixe, ou o devoto espera o seu milagre: em silêncio, sem se impacientar com a demora. E o amor a gente não conta pelo jornal a não ser quando quando o sentimento trai a frase, juntando palavras que deviam estar sempre separadas.
Cá estou, porém, nesta janela que não me deixa mentir, em frente à noite de que sou uma espécie de filho de criação, a repassar lembranças de uma moça que, de mim, se muito recordar, recordará meu nome. Eu também a esquecerei, mas daqui a duas ou três mulheres importantes. Agora, faz-me bem, inclusive, sofrê-la um pouco. É tarde. Deveria ir para a cama. Todavia, não seri direito. Numa moça, a gente pensa na janela.

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