29 de out. de 2015

EDGAR ALLAN POE – O Duc De L'Omelette


PEDRO LUSO DE CARVALHO
 EDGAR ALLAN POE nasceu a 19 de janeiro de 1809, em Boston, Estados Unidos da América, e faleceu a 7 de outubro de 1849,  em Baltimore, EUA, aos 40 anos de idade. Foi poeta, contista e ensaísta. Mistério e elementos macabros que impregnam suas histórias deram ao estilo gótico americano uma outra face. William Carlos Williams dizia que Poe foi o primeiro autor verdadeiramente americano.
Entretanto, o reconhecimento, como grande contista, poeta e ensaísta, deu-se primeiramente na França, que teve como divulgador de sua obra e o primeiro a traduzi-la para o francês, o conceituado poeta Charles Baudelaire (1821-1867). Mallarmé, um dos expoentes do Simbolismo francês, continuou a fazer a divulgação das histórias e poesias de Poe, que se viu consagrado nos dois anos que antecederam sua morte.
A prosa de Edgar Allan Poe, com seus contos, impregnados de elementos misteriosos e macabros, mudou a literatura dos Estados Unidos, até então presa às convenções ditadas pela moral e pela religião. Poe influenciou escritores importantes, dentre eles, Jorge Luis Borges. No nível de Poe estão, além de Borges, diz André Maurois: Kafka, Wells e Chesterton. Maurois afirma que "Poe escreveu contos perfeitos de horror fantástico e inventou a narração policial”.
O conto O Duc de L'Omelete, que segue, de Edgar Allan Poe, integra o livro Antologia de Contos (In Edgar Allan Poe. Antologia de Contos. Tradução de Brenno Silveira. Rio de Janeiro: 1959, p. 179-182):

O DUC DE L'OMELETTE
– EDGAR ALLAN POE

Kats foi vítima de uma crítica. Quem morreu por causa de "Andromache"? (1) Almas ignóbeis! De L'Omelette pereceu devido a uma hortulana. (2) L'histoire en est brève. Valei-me Espírito de Apício!
O pequeno vagabundo alado, enamorado, lânguido, indolente, foi transportado numa gaiola dourada de seu lar distante, no Peru, para a 'Chaussée D'Antin'. De sua propriedade real, La Bellissima, o afortunado pássaro foi levado, por seis pares do império, ao Duc De L'Omelette.
Aquela noite, o duque devia cear sozinho. Na intimidade de seu gabinete, recostou-se languidamente na otomana pela qual sacrificara sua lealdade  ao rei, fazendo um lance maior que o do soberano – aquela notável otomana do Cadêt.
Mergulha o rosto na almofada. Soam horas no relógio. Incapaz de refrear seus sentimentos, Sua Excelência mete na boca uma azeitona. Nesse momento, a porta abre-se delicadamente ao som da suave música, e eis que o mais delicado dos pássaros surge ante os olhos do mais apaixonado dos homens! Mas que consternação inexprimível é essa que então ensombrece a fisionomia do duque? Horreur!... chien!...Baptiste!...l'oiseau!... ah, bom Dieu... cet l'oiseau modeste que tu as désabillé de ses plumes, et que tu as servi sans papier!  Não  preciso dizer mais: o duque expirou num paroxismo de náusea.

*  *  *
– Ah! Ah! Ah!, riu Sua excelência, três dias depois de sua morte.
– Ih!, ih!, ih!, fez o Diabo, baixinho, adotando um ar de hauteur.
– Certamente, o senhor não está falando a sério, retorquiu De L'Omelette. Eu pequei, c'est wrai, mas meu bom senhor, pense bem!... Não creio que seja sua intenção por em prática essas... essas ameaças bárbaras.
– Não, hem? Exclamou o Diabo. Vamos, meu senhor, dispa-se!
– Despir-me? Ora essa!... Não, senhor, não o farei. Quem é o senhor, diga-me, para fazer com que eu, Duc De L'Omelette, Príncipe de Foie-Gras, já maior de idade, autor da “Mazurkiad” e membro da Academia, deva depojar-me, a seu pedido, dos mais suaves calções jamais feitos por Bourdon, do mais elegante robe-de-cambre jamais confeccionado por Rombêrt... isso sem me referir ao trabalho que me daria descalçar as luvas e tirar os papelotes de meus cabelos?
– Quem sou eu?... Ah, é verdade! Sou Belzebu, Príncipe das Moscas. Acabo de retirá-lo de um ataúde de jacarandá tauxiado de marfim. O senhor estava curiosamente perfumado e rotulado, como uma mercadoria a ser despachada. Foi Belial quem o mandou – o meu Inspetor de Cemitérios. Os calções que, segundo diz, foram feitos por Bourdon, são, com efeito, excelentes, e o seu  robe-de-cambre uma mortalha bastante ampla.
– Senhor! Exclamou o duque. Não consinto que me insultem impunemente! Na primeira oportunidade vingar-me-ei dessa ofensa!... O senhor receberá notícias minhas! Entrementes, 'au revoir!'
Com uma curvatura, o duque ia-se afastando da presença do Satanás, quando seus passos foram interceptados por um par do reino, que o troxe de volta. Aí, então, Sua Excelência esfregou os olhos, bocejou, deu de ombros e refletiu. Satisfeito com a sua identidade, lançou o olhar em torno.
O apartamento era soberbo. Mesmo De L'Omelette não poude deixar de considerá-lo bien comme il faut. Não se tratava apenas do seu comprimento ou de sua largura, mas de sua altura!... Ah, esta era espantosa!... Não havia, certamente, teto, mas uma turbilhonante massa de nuvens cor de fogo. Ao olhar para cima, Sua Excelência sentiu uma vertigem. Pendendo do alto, havia uma corrente de metal desconhecido e cor de sangue, cuja extremidade superior se perdia, como a cidade de Boston, parmi les nues. Em sua extremidade inferior, oscilava uma grande luz. O duque sabia  que era um rubi, mas irradiava um brilho tão intenso, tão fixo, tão terrível, como a Pérsia  jamais adorara... como Gheber jamais imaginara... como um mulçumano jamais sonhara quando, embriagado de ópio, cambaleava para um leito de papoulas, as costas voltadas para as flores e a face para o deus Apolo. O duque murmurou uma blasfêmia, de decidida aprovação.
Os cantos do aposento eram cercados de nichos. Três deles continham estátuas de proporções gigantescas.  Sua beleza era grega, sua deformidade egípcia, seu tout ensemble, francês. No quarto nicho a estátua estava velada, e não era colossal. Mas via-se um tornozelo delicado e um pé calçado com sandália. De L'Omelette levou a mão ao coração, fechou os olhos, ergueu-os e, enrubescendo, deparou com o Príncipe das Trevas.
Mas as pinturas! Krupis! Astarte! Astoreth! E Rafael  as contemplara! Sim, Rafael estivera ali, pois não fora ele quem pintou o----? E não fora ele condenado por isso? As pinturas!... oh, as pinturas! Que suntuosidade! Que amor! Quem é que, contemplando aquelas belezas proibidas, teria olhos para os delicados adornos das douradas molduras que pontilhavam, como estrelas, os muros de jacintos e de pórfiro?
O duque, porém, sente o coração desfalecer no peito. Contudo, não se acha, como se poderia supor, perturbado com aquela magnificiência, nem tem a respiração suspensa devido a todos aqueles inumeráveis incensórios. C'est vrais que de toutes ces choses il a pensé beaucoup... mas, na verdade, o  Duc De L'Omelette  está paralisado de terror: em meio da sombria paisagem descortinada através da única janela que se achava aberta, eis que divisa os clarões da mais medonha de todas as fogueiras!
Le pauvre Duc! O duque não poude deixar de imaginar as magníficas, as voluptuosas, as incessantes melodias que penetravam no salão, depois de filtradas e transmudadas pela alquimia das vidraças encantadas, eram de lamentos e os uivos desesperados dos condenados! E ali, também, sobre aquela otomana, quem poderia ele ser?... ele, o petit-maître – não, uma Deidade – sentado, imóvel, como se talhado em mármore, 'et qui sourit', com o seu pálido rosto, si amèrement ?
Mais il faut agir, isto é, um francês jamais fraqueja de todo. Ademais, Sua Excelência detestava cenas...  De L'Omelette recobra sua personalidade. Havia alguns floretes sobre a mesa... E o duque aprendera esgrima com B-; il avait tué ses six hommes. Ora, assim sendo, il peut s'échapper. Examina os dois floretes e, com graça inimitável, concede a escolha ao Príncipe das Trevas. Horreur! Sua Alteza não sabe esguimir!
Mais il joue!... Que lembrança feliz! Sua Excelência, porém, sempre tivera ótima memória. “Depenara” no jogo o “Diable” do Abade Gualtier. Consta-se, a respeito, que le Diable n'ose pas refuser  un  jeu d'écarté.
E as probabilidades... as probalidades? Péssimas, sem dúvida – mas não piores do que a situação em que se encontrava o duque.  Além disso, não era ele o senhor do segredo? Acaso não tirara a pele de Pére Le Brun? Não era sócio do “Club Vingt-un”? Si je perds – pensou – je serai deux fois perdu... estarei duplamente perdido... voilà tout! (Aqui, Sua Excelência deu de ombros.) Si je gagne, je reviendrai a mes ortolans... Que les cartes soient préparées!
Sua Excelência revelava, em sua atitude, o máximo cuidado, a máxima atenção; Sua Alteza, a máxima desconfiança. Um espectador teria pensado em Francisco e Carlos. Sua Excelência pensava em seu jogo. Sua Alteza não pensava: embaralhava as cartas. O duque cortou.
São dadas as cartas. O trunfo é virado... É... é... o rei! Não... é a rainha. Sua Alteza, o Príncipe das Trevas, lançou uma imprecação ante suas vestes masculinas. De L'Omelette levou a mão ao coração.
Jogam. O duque enumera as cartas. Sua Alteza pesadamente, faz o mesmo, enquanto toma vinho. O duque tira furtivamente uma carta.
C'est à faire, diz Sua Alteza, cortando.
Sua Excelência faz uma curvatura, dá as cartas e levanta-se da mesa en présentant le Roi.
Sua Alteza mostra-se contrariado.
Se Alexandre não fosse Alexandre, teria gostado de ser Diógenes – e o duque assegurou ao seu adversário, ao partir, que s'il n'eût pas De L'Omelette  il n'aurait point d'objection d'etre le Diable.


  *  *  *

1) " The Andromache" – Monfleury. O autor do 'Parnasse Reformé' faz com que ele fale, no inferno: 'L'homme donc qui voudrait savoir ce dont je suis mort, qu'il ne demande pas s'il fut de fièvre ou de podrage ou d'autre chose, mais qu'il  entende que ce fut de “L'Andromaque'.

2) “ hortulana” - Pássaro europeu, 'Embetiza hortulana'.  - N.  do T.
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Pedro